Água e Género: que relação?
Resumo: O objetivo deste artigo é analisar de que forma o aumento dos fenómenos climáticos se correlaciona com o aumento da violência contra as mulheres. Partindo-se do panorama científico das alterações climáticas no Brasil e dos impactos na vida das mulheres, iremos procurar estudar a violência na Amazónia, em especial contra mulheres indígenas. Através da revisão de estudos de caso e dados relevantes, argumenta-se que é imperativa uma abordagem de género para a compreensão e mitigação dos impactos da crise climática no Brasil. Além disso, são discutidas algumas possíveis soluções e políticas públicas para abordar os problemas e fortalecer a resiliência das mulheres em face da crise climática. No limite, procura-se responder à questão: como é a que a diminuição de uma colheita aumenta os casos de exploração sexual das mulheres?
Somos ensinados, desde cedo, que a água é um bem precioso, que existem milhões de pessoas que não tem acesso à mesma. Porém, no Norte Global, a realidade é dar-se esse recurso como garantido, seja quando abrimos a torneira para lavar a loiça ou para tomar banho, seja no mero ato de clicar no autoclismo.
A água é um direito humano e faz parte dos objetivos que a Organização das Nações Unidas (ONU) previu para a Agenda 30. O objetivo 6 da Agenda realça a água potável e o saneamento como um direito a que todos os seres humanos deviam ter acesso de forma igualitária e segura. Atualmente, uma em cada dez pessoas não tem acesso a água limpa e segura perto das suas habitações; uma em cada cinco não tem sistema de saneamento seguro. Porém, não só esse direito não é acessível a todos, como afeta crucialmente o género feminino. Regularmente tratados como temas diferentes, o facto é que as temáticas de género e da água e saneamento relacionam-se de forma crítica. Para as mulheres, a atual crise de água e saneamento é pessoal.
De acordo com os estudos da ONU, a ação de recolher água para as famílias, ou para a comunidade, recai em 80% na responsabilidade das mulheres e meninas cujas habitações têm falta de acesso a água potável. Significando, assim, que as mulheres de todo o mundo gastam coletivamente 200 milhões de horas, de forma diária, na recolha de água. Estas percentagens demonstram meramente uma parte do problema.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a UNICEF criaram o Programa Conjunto de Monitorização para o Abastecimento de Água, Saneamento e Higiene (JPM). No mais recente relatório são descritas as inúmeras consequências que o encargo de recolher água diariamente acarreta para as mulheres. Esta atividade tem um custo caro para a saúde das mulheres – o desgaste físico leva a que muitas acabem por deter ferimentos e lesões musculares para o resto da vida.
A nível físico, é de salientar o risco que as mulheres correm todos os dias de abusos sexuais, não só enquanto recolhem a água. Caso os homens da comunidade acreditem que a tarefa não seja realizada de forma correta ou as refeições preparadas a tempo, torna-se fundamento de abuso também. Por fim, aquando da participação em reuniões comunitárias onde se discutam aspetos relacionados com a água, as mulheres são percepcionadas como um “desafio” pela reivindicação de certos direitos – são vistas como perigosas para o sistema.
Num estudo realizado no Zimbabué, África do Sul, Quénia e Colômbia foi descoberto que homens vendedores de água limpa podem favores sexuais em troca de acesso a água limpa . Ainda, mulheres e meninas são forçadas a ter relações sexuais de forma a poderem aceder a produtos de higiene menstrual, sendo que o impedimento de “sextortion” tem vindo a ser uma das principais prioridades neste problema. A nível da saúde mental, há um desgaste psicológico derivado da insegurança do que lhes possa acontecer, do receio da quantidade e qualidade de água e das paupérrimas condições higiénicas. Mulheres da Bolívia, Índia, Quénia e Uganda demonstraram níveis altos de stress e ansiedade quando questionadas sobre esta realidade.
Além desta realidade parecer longínqua da nossa, na verdade, nos denominados “Países Desenvolvidos”, o acesso à água e saneamento também encontra limitações. No mesmo relatório do JPM, nos Estados Unidos, 68% das pessoas transgénero ou não binárias já foram vitimas de assédio, abuso sexual e ofensa à integridade física quando utilizam casas de banho públicas, ou mesmo quando vão realizar a troca de produtos de higiene menstrual. Em Portugal ainda existem áreas de alojamento que não têm acesso a sistema de drenagem de águas residuais ou mesmo sistema público de abastecimento de água. Segundo os dados mais recentes, referentes a 2020, 15% dos alojamentos em Portugal ainda não estavam abrangidos pelas redes de água canalizadas, esgotos ou ETAR.
Uma das preocupações das organizações é a falta de dados relativos ao assunto – estão disponíveis apenas 26% dos dados necessários para monitorizar o progresso do acesso a água e saneamento a nível do género. O progresso de programas como o JPM, na sua maioria das vezes, não alcança a problemática da desigualdade entre géneros no acesso à água. Outra barreira a mencionar é o impedimento das mulheres fazerem partes das estruturas de decisão – apenas 18% das mulheres fazem parte de equipas que trabalham com água e saneamento e 12% assumem cargos políticos relacionados com os setores do clima e habitação.
As organizações internacionais da área apontam os programas de treino e de educação, as reformas na legislação e o direito à propriedade das mulheres como algumas das políticas públicas essenciais ao combate à desigualdade de género no acesso à água..
Aquilo que para nós é um mero gesto de abrir a torneira para milhares de mulheres é uma tortura diária. O que para nós é uma garantia, é o risco de abusos ou violência. Uma mera ida à casa de banho ou a simples troca de produtos de higiene menstrual é uma impossibilidade. Para as mulheres a luta por água e saneamento é pessoal e a ação das instituições internacionais tem de ser mais eficaz do que está a ser até ao momento.
Raquel Oliveira